escrever é o meu teatro mudo

escrever é o meu teatro mudo
escrever é o meu teatro mudo | 24.08.2002

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Crónicas da humanidade




Hoje

Há dias assim.
Em que as lágrimas insistem em bater à porta dos olhos. 
Talvez devesse ser menos sensível. Talvez até mais fria e cirúrgica, como uma enfermeira em campo de batalha, com coração empedernido não pela falta de sentimento mas pelo excesso de crueldade. Há uma imunidade natural que se conhece a quem vive nas trincheiras. Mas, talvez porque o sangue não nos escorre nos dedos, desconhecemos que todos vivemos nelas. Mas eu, eu sofro de imunodeficiência sentimental.  Meu sistema não se endurece com o passar dos anos e o sangue invisível que me escorre dos dedos, do peito, e que se entranha até aos ossos, faz-me sentir a vulnerabilidade de um ataque que não me chega, um ataque que me inquieta, um ataque que é meu, porque é de todos. 

Índia 

Em 2019, estive na India. Amo a India! Pertenço lá! Sou seguidora das suas tradições e ensinamentos e no entanto, sei que não há lugar nenhum tão discrepante. Lá a pureza e violência caminham na mesma rua, lado a lado, lá a pobreza e ostentação são siamesas, lá a dor dói mais na falta de um lar, de uma família, de uma mãe numa criança de três anos que caminha sozinha, perdida na rua e senta para chorar em desespero. A fome, é o fado dessa criança e ela a saciará um dia após o outro, sem pensar no amanhã. Olha aquele momento e o seu estômago vazio, a dor que lhe provoca, a falta de um colo, a falta de um porto, a falta de dinheiro. Lá as crianças, algumas, milhões delas, crescem nas ruas e trabalham aos seis. E eu vi-as com pilhas de tijolos maiores do que elas a construir as estradas que os tornarão mais “civilizados”, bem como as mães, de embriões no ventre, a carregar o seu peso em areia, ao lado de escarpas íngremes e inseguras nos Himalayas, sujeitas à morte, sem medo, ao qual são imunes pelo excesso de vezes que já lhes bateu à porta. 

Índia - o outro lado

Calcutá

Nesse lugar - a Índia- há homens e mulheres que todos os dias se levantam as 5 da manhã para arrumarem as suas casas e depois, em missão de vida, em missão constante, fazem trabalho de reencontro de famílias perdidas, dia e noite, mês após mês, numa luta constante contra o karma, contra a inevitabilidade de um país lotado de gente sem recursos. Estive em casa de um deste homens. Um homem bem falante, inteligente e extremamente educado. Uma perspicácia fora do comum, e um coração de ouro. Ele é uma das muitas caras do outro lado da Índia. Há um lado na Índia que é exemplar. No meio do lodo, floresce o melhor da humanidade. 
É isso que guardo no coração. 
Estou para encontrar um povo que seja mais resiliente, mais humano, cooperativo e altruísta. 
Acredito que não exista… 

Baba

No cimo dos Himalayas, numa aldeia remota, conheci um Mestre. Homem sábio, de poucas palavras, foge do protagonismo e acredita que as palavras que entoa são proferidas por Deus, assim como todos os actos dos Homens. Quando lá ficamos, no seu humilde ashram, tivemos a oportunidade de observar as suas práticas diárias, de reconhecer como cuidava de crianças desfavorecidas e como elas cresciam, felizes, apesar de órfãs. Os meus filhos, que foram comigo, privaram com elas, num inglês que lhes era muito tosco, num local onde os professores escasseiam mas as vontades são grandes. Daquelas meninas, não havia uma que não tivesse vontade de prosseguir os estudos académicos. Muitas delas, não teriam essa oportunidade, pois chegada a idade de casar, seriam moeda de troca dos seus pais empobrecidos. Ali, o brilho nos olhos não desvanece. Lembro-me bem da minha filha sentir a dor da sua própria abundância ao rever-se nelas. 

Os ricos

No sopé dos Himalayas, estivemos em contacto com uma ordem de Sanyasis - monges renunciantes. Renunciaram à vida em família, mas não à obra social. Ali, uma escola, um hospital dedicado a um problema transversal ao país - as doenças oculares. E uma equipa holística de médicos, cirurgiões, médicos ayurvédicos, homeopatas, naturopatas, que de forma cooperativa e integrada, recebem a troco de nada pessoas desfavorecidas, e as cuidam. 
Viajamos no mesmo autocarro que um grupo de aldeões de várias aldeias remotas dos Himalayas. Este autocarro, foi doado, assim como todo o hospital, e a sua construção. Há gente rica na India, riquíssima, com um coração de ouro. Há gente que constrói com um donativo único, um hospital, uma escola, um orfanato, um templo. Há gente na India, como não há em Portugal. Que sabe que o dinheiro é feito para circular, e para criar união. Há gente que entende que não se pode ser feliz com a miséria do outro lado da nossa porta. 

O autocarro

Esse autocarro percorreu as aldeias, e recolheu gentes de todas as idades, com deficiências oculares e trouxe-as até ao sopé dos Himalayas, para se tratarem. Enquanto lá estiveram, depois de operações bem sucedidas, ainda em convalescença, esse autocarro levou-os a ver lugares que nem em sonhos estas pessoas sonhariam visitar. Mais do que médicos, são anfitrões, de gente sem eira nem beira, num país de contrastes, onde se destaca o amor ao próximo. Fizemos a viagem de regresso, e vimos os seus sorrisos de agradecimento, à medida que iam sendo deixados novamente à porta de casa. Na India, não se agradece muito a ajuda. Ajudar faz parte, como faz parte lavar o corpo ou orar.  

A lição

Na india, vivemos a dor e a alegria com a intensidade de um nascimento, a cada momento. E choramos, porque a vida lhes é dura como nunca nos foi. E choramos, porque a vida os ensina a ser melhores, do que alguma vez seremos. 


Os afegãos

E hoje, a minha filha, liga-me. Do conforto da sua vida de escola, onde estuda música, privilegiada talvez, porque ainda a música é só para alguns. Privilegiada também porque nós pais lutamos lado a lado pelos seus sonhos. E porque, por mais que nos custe, por mais que nos tirem a pele, faremos o que estiver ao nosso alcance para que sigam os seus sonhos. E do alto do seu privilégio, relembra-me a atrocidade acontecida há um ano atrás, onde uma escola de música no Afeganistão, foi destruída pelos recém empossados talibãs. 

Os Talibãs e a morte da cultura

Há um ano, reviraram-se-me as entranhas ao ver pianos e instrumentos tradicionais, como as minhas tão amadas tablas, destruídos sem piedade, numa escola referência internacional. Um governo, impiedoso e desumano, quis destruir a música. Começou pela escola onde eles se formam. Destruiu uma orquestra feminina. Perseguiu localizou e assassinou brutalmente um cantor. Só porque sim. 
A arte neste país, já não é permitida. 
As razões? 
Não se permite a arte porque a arte é expressão. E quem se expressa, é livre. 
Neste país, espelho vincado de um mundo, não se querem pessoas livres…


Os 10 músicos que são milhões 

A minha filha, liga-me hoje e diz-me que chegaram à sua turma de conservatório 10 alunos afegãos. Estão sozinhos, e vieram para Portugal para lutar pelos seus sonhos: serem músicos! 
Tal como os indianos, os afegãos, segundo ela, são resilientes, divertidos, felizes à sua maneira. 
Hoje, numa inversão inesperada, a minha pequena aprendiz de flautista, recebe a bola de um amigo afegão. Ela a dizer que não era suficientemente boa a fazer aquilo, sentia-se incapaz. Ele, pareceu aos seu olhos mais competente, e como tal, ela passa-lhe a bola, na esperança de marcar ponto. Ele, o menino que vem de um país corrompido pela violação de todos os direitos humanos, devolve-lhe a bola e com a resiliência esperada de quem cresceu na escola injusta da vida, diz-lhe: "tens que tentar até conseguires.” 

O mundo a sério

Neste mundo a sério, não contam os pontos. A competição, não existe num mundo real. 
Neste mundo, existe a humildade e o dar a mão ao mais fraco. Seja ele um refugiado de guerra, ou uma menina, que não sabe jogar.
Enquanto a ouço, esforço-me por não deixar derramar o choro num rio que me banhe. 
Respondo-lhe que ela já viveu isso, três anos antes, com as meninas da India. Essa força, esse desprender do ego, esse reconhecimento do "Crescer com Gente", essa resiliência de ser humano contra tudo e contra todos. 
Ela, vivencia-o hoje, afortunadamente pela segunda vez na sua vida. Só quem lá esteve sabe. Só quem lá vive muda… E nós, família portuguesa, somos afortunados. Este maya - esta ilusão descrita pelos indianos, às vezes, por breves instantes, torna-se para nós mais perceptível. Vivemos todos esta ilusão. Somos em cada instante o rico, com a possibilidade de doar, o menino perdido, nas ruas de Calcutá, o músico sem chão, com o seu mundo destruído. Somos também o que pune, o que viola, o que degrada, o que proíbe. A linha, é demasiado ténue no mundo real. O coração é o mesmo, nestas almas siamesas de dor e esperança, de amor e de ódio. De que lado nos colocamos? 

Não consigo ser imune! Eu aqui, do conforto da minha vida, e 10 meninos afegãos, sem família, lutam pelos seus sonhos. Eu que iludidamente penso que me esforço de forma sobre-humana para ajudar a minha filha a seguir os sonhos dela. 
Olho para os pais dessas crianças: A única forma que encontraram de os ajudar foi largar mão deles. Os pais, acorrentados a um chão demasiado duro e infértil, como árvores velhas num solo quebrado pela seca, libertam as suas sementes na esperança que voem para longe, e vivam e cresçam sem escassez. 

A lição

Digo à minha filha que esta lição veio ter com ela duas vezes. Talvez daqui se tire sumo. Talvez isto impacte a sua vida. Talvez um dia, ela seja como o homem de Calcutá que ajuda os perdidos, ou como o doador rico que constrói hospitais, ou tenha uma escola, quem sabe de música, no meio dos Himalayas ou de outro lugar remoto. Talvez nada disso aconteça, e ela seja só uma boa mulher, sabendo o que é o mundo real, e vivendo de acordo, com os princípios nobres, que hoje se perdem como as lágrimas e se evaporam sem criar rios. Talvez ela se forme, e possa deixar sementes nas mentes, nas páginas, nos ouvidos com a sua música. Porque a arte não se perde enquanto houver cabeças livres. Porque não se prende a criatividade, não se mata a vontade e cultiva-se, com a vida, a resiliência. Seja o que for minha filha, eu sou aquela mãe que te ensina a voar alto, mesmo que isso signifique deixar-te ir. Do meu coração, podes ter a garantia de que não se tornará empedernido. Não tenho imunidade sensorial ou emocional. Serei o teu forte, mas verás sempre as minhas lágrimas, porque não as escondo de ti! Ensino-te a viver porque é assim que somos. Vivos! E não zombies. E hoje, pequenina ainda que és, e grande como uma montanha que te tornas, sei-te capaz! Não temas o mundo real. Aprende com quem de lá vem: Os sorrisos, a cooperação, a resiliência, a vontade, a coragem! Aprendamos todos! Tentemos marcar pontos num campeonato mais humano, onde não interessa quem melhor lança a bola, mas sim ensinar todos a lançá-la. 

Portugal sensível

Desligo a chamada emocionada. Não quero que me vejam assim, mas também não me importa se me virem. As lágrimas não caem, com muito esforço meu. Lembro-me da notícia que partilhei há um ano e apresso-me a partilhá-la com a minha filha para que saiba o que lhes aconteceu. Enquanto pesquiso, descubro que após este incidente, o governo Português se ofereceu para receber este músicos e ser a nova sede desta escola afegã. Uma tentativa de preservar uma cultura que não é a nossa, e de doar a oportunidade a 273 jovens, para que sigam os seus sonhos, com dignidade, com segurança. Tive orgulho da sensibilidade Portuguesa. Estamos muito adormecidos hoje, mas somos viajantes atemporais. Na índia, ao contrário dos ingleses, somos acolhidos sem diferença, apesar da colonização. Soubemos, ao longo de séculos estar, em terras alheias, sem causar muito dano, e respeitando a cultura. Cometemos erros imensamente crassos no passado, mas fomos os primeiros a redimir-nos deles. Aceitamos a diversidade, e não estigmatizamos a diferença. Quando alguém precisa, também nos movemos. Somos como os indianos, pobres à nossa maneira. A única diferença é não termos ricos que doem hospitais inteiros. Diferencia-nos a competição versus a cooperação deles. A escassez teve em nós resultado oposto. Guardamos e pilhamos, não dizemos e competimos. Talvez por eles serem biliões, mais depressa descobriram que onde todos cooperam, todos ganham. Mas às vezes, nós portugueses, doamos o coração e a terra, que não é nossa, porque somos nós que lhe pertencemos e não ela a nós. As linhas imaginárias a que chamamos fronteiras, são tão ténues como as linhas que dividem a pureza e a maldade. Caminhamos lado a lado. Portugueses, afegãos, indianos, espanhóis… 
Agradeço a Portugal a preservação dos sonhos de 273 pessoas. Sei que não há milagres, porque as nossas fronteiras imaginárias, são pequenas, e não permitem abarcar o mundo. Mesmo assim, que não nos tornemos imunes aos sonhos dos outros, ao mundo real vivido nas trincheiras. Estamos lá todos. Só que uns estão de costas voltadas a olhar o céu azul. Outros, mais à frente, dão o corpo às balas enquanto seguram o seu instrumento. Quando caírem, seremos nós os desprotegidos e levaremos com as balas, porque nos distraímos. Mas, ao fecharmos os olhos, nós e eles, no último fôlego, lembraremos o céu.
 

21 Setembro 2022
Texto: Luzia Peixoto (@luz.peixoto)
Photo: https://www.indiatoday.in/world/story/grand-pianos-instruments-smashed-kabul-recording-studios-taliban-afghanistan-1849645-2021-09-06

Nota: Na escola de yoga e projecto que dirijo em conjunto com o meu companheiro, realizamos angariações de fundos para ajudar projectos na India. Há um ano, um concerto e angariação de fundos para ajudar o hospital referido acima, durante a época covid, fez chegar ao hospital mais de 1000€
Nota: , e este ano, esperamos juntar dinheiro para a compra de mini-éolicas para as zonas desprotegidas dos himalayas, como duas escolas que visitamos, e o orfanato do nosso querido Baba. Tentamos fazer a nossa parte. Não conseguimos apenas ficar parados.
Mais info sobre os nossos projectos contactem-me ou subscrevam a newsletter em Dharma-dhatu.com


terça-feira, 12 de abril de 2022

Encontros

 

As pedras da lua têm traços de arco-iris e eu, sentada na beira da cama, vejo um céu tenebroso e rasgos de estrelas. Tenho perdidas as coisas nos bolsos, que de tão fundos se esquecem do caminho de volta. Ouço o eco, ao longe, de quem deixou cair um botão de rosa e esperava um obrigada, ou um beijo quente... Nada disso aconteceu.
O silêncio, fez-se ruídoso no coração de um homem morto por dentro. As mãos flácidas, desapegadas dos espinhos que lhe sangram os poros, e uma lágrima seca na curva do rosto… Uma mão sobre o seu ombro, e o silêncio compassivo de quem diz tudo, não verbalizando nada. A sua face, amarrotada nos lençóis - inerte, e ainda viva. Sem brilho, mas ainda viva.
Eu, na beira da cama, de joelhos, prostrada, sou extensão de um corpo sem vida por dentro e seguro-o numa transfusão de sentir para que não me morra ali, deitado, porque até os amantes devem morrer de pé.

Ergo os olhos ao céu num rasgo de estrelas e forço o brilho no meu semblante para que se estenda e se entenda por quem desistiu de bater as asas. Eu, com brilho de arco-iris na pele à meia luz, e ele, derrotado em silêncio.

Nunca o silêncio foi tão crucial…
 
Olhava as pedras da lua e o céu tenebroso e no silêncio importante que nos abraçava, eu de pé, sentada, e ele deitado, caído - e a janela aberta - e por momentos, num rasgo de egoísmo, eu a compassiva esqueci que ali estava e deveria ser seu reflexo e o coração abriu-se e o peito expandiu-se para lá de mim.

O silêncio era mais vasto que nós dois e ecoava por toda a esfera celeste. O ar teimava em fazer bater as portadas e o vento assobiou nos meus cabelos mas não nos dele, que eram curtos e estavam escondidos da janela… A luz de um arco-iris inundava-me o rosto e os assobios nos caracóis delineavam-no... Um suspiro selvagem saiu de mim quebrando o silêncio. Julgo, tê-lo ouvido do outro lado do mundo. Juro tê-lo ouvido a serpentear na via láctea e regressar à janela do quarto.

Quebrado o silêncio, o que nos restava?

Virei o rosto, e ele, ainda deitado, de olhos fixos em mim, e não num horizonte distante. E ele, menos morto por dentro e mais vivo por fora. E eu, surpresa pela doçura de um recém-nascido, velho mártir do amor. Vou ao fundo dos bolsos e encontro de volta as palavras esquecidas. Ele, levanta-se e a lágrima seca no rosto escorre agora em jorro desenfreado. Um abraço, e o sangue que seca e se recolhe dentro dos poros.
A noite vai alta e a transfusão de vida fez efeito porque o corpo por dentro morre a cada pequena perda, mas ressuscita a cada novo encontro.
Eu ali, como sempre estive e ele, finalmente ali, como sempre esteve sem o saber. As mãos antes flácidas, pegaram nas minhas e e os pés moveram-se em uníssono - o rio era já ali ao lado e o amor tem que ser romântico.
E... num instante, eu e ele - há tanto tempo, e hoje, pela primeira vez.
Porque as epifanias acontecem sabem?
E ainda bem!
Ainda bem.

__________________________

Texto: Encontros por Luz Peixoto
Photo: @jammggi - Alberto de Magalhães

#phtopoetry #writedillustration #Text #photo #poesis #people #avidadagente #encontros #epifanias #escrita


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

 

 

 


 

 

(Da minha janela)

Havia entre eles uma cumplicidade amarga.
Caminhavam de mãos dadas apenas em dias cinzentos e olhavam-se várias vezes profundamente nos olhos, mas só durante a noite, num sequenciado acender e apagar de luzes da divisão onde habitavam a maior parte do tempo. Reconheciam-se nas pequenas coisas quando encontravam os pensamentos mesquinhos de um e de outro, na tampa da pasta de dentes aberta, ou na tampa da sanita por fechar. Nada neles aparentava romance. Da minha janela conseguia ver um relacionamento sombrio, que florescia apenas em momentos lúgubres. 
Era como um dia triste de inverno, que regozijava de prazer ao molhar torrencialmente as ruas, enquanto levava os guarda-chuvas pelo ar. 
O que os mantinha juntos há tantos anos? Não sei… 

(Dentro de portas) 
 
Em dias cinzentos, ele agarrava-lhe a mão com força, sabia que era difícil para ela essa claridade enevoada e difusa, que cobria as coisas de uma luz branca forte. Deixava-a tonta e desorientada. Ela, retribuía com um sorriso, e uma confiança que a deixava segura. Ao chegarem a casa, e devido à sua fotossensibilidade, ele criou um jogo, que lhe permitia adaptar-se e ao mesmo tempo trabalhar terapêuticamente sobre o seu problema. Com ela no centro da sala, ele apagava a luz e voltava a acendê-la, repetida e sequencialmente. Quando a luz se acendia, fitavam-se profundamente nos olhos fazendo essa tão necessária ginástica ocular que lhe permitia não perder totalmente a visão durante o dia. 
Conheciam-se tão bem que necessariamente deixavam a tampa da sanita e a pasta de dentes abertas, pois o branco de ambas dificultava a sua amada na sua tentativa de manter alguma independência. Ao fazê-lo, sorria. E ela ao ver os seus pequenos gestos, sentia-se acalentada pela sua constante presença. 
Tudo neles era romance. Dentro daquelas portas, era como um dia quente de primavera, onde a chuva rega abundantemente as plantas reconhecendo a beleza dos seus frutos, e o vento transporta as sementes para longe, para que o seu destino se cumpra. 
O que os mantinha juntos há tantos anos? O amor…

 
 
Texto: Luz Peixoto (instagram: luz.peixoto)
Photo: Egidio Santos (instagram:egidiosantosfoto)


quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Véu

 

 


À noite
às vezes,
sopra
o vento.
Às vezes,
chora
a ausencia.
Às vezes,
fecha-me os olhos
e diz-me baixinho
-dorme!

Eu,
olhos abertos
mente volante,
às vezes
choro.
E sopro
a ausência
pra longe...

Às vezes,
faço dia
no peito
e sol no umbigo
e deleito-me
nesse sabor
sem tempo
de lua cheia
em céu estrelado,
e corpos cobertos
de nuvens densas...
Às vezes…

E o riso trovejante
de uma mente em delírio
e a respiração
decrescente
de uma placidez
repentina
e acalmia
no olho da tempestade
e…

Fecho os olhos
quando
às vezes,
é dia.
E também às vezes
a brisa da aurora
me diz baixinho
-desperta!

Eu,
sono profundo
numa realidade sonâmbula
e, às vezes
acredito!
Que é dia fora do peito
e que o sol não é umbigo
mas bate nele!
Que resplandesço
por empatia
e semelhança
- Sou espelho.

De olhos abertos ou fechados,
- já não sei -
mas sei que que o céu estrelado
permanece pra lá das pálpebras
que as nuvens densas
estão para lá dos corpos
e que eu não sou corpo nem pálpebras
nem dia nem noite
e, às vezes,
realizo
a ilusão
e o véu
e o brilho
e o sonho
- e cansa isso! -
E volto para casa,
de olhos fechados
e dia no peito
e permaneço desperta
na ausência...
E o vento...
sopra...
Sempre! Sempre! 



Texto: "Véu" por @luz.peixoto (segue também no instagram) 
Photo: @egidiosantosfoto (obrigada por esta inspiração!)

Luz Peixoto 

Dezembro 2021

 

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Novembro

Novembro.  E as velas já se acendem nos altares e ora-se aos mortos e aos que renascem. Fala-se das brumas e do véu fino entre os mundos, transparente e permeável, que me leva a visitar a minha avó e o meu pai e pelo caminho, ver tantos pais e avós e mães de outros - alguns, esquecidos, outros ainda carpidos em rostos mortos de corpos vivos.

 

Foto de Egidio Santos

Os filhos, procuram as mães que permanecem do lado de cá do véu fino e transparente. As mães, de rostos mortos e máquina cardíaca que insiste em não se desligar, já não procuram nada a não ser o conforto da morte. Há mãos pousadas sobre os ombros desses que continuam vivos. Permanecem lá em silêncio, porque não há palavras nem expressões efusivas que salvem um corpo livre da alma. 
Na porta do véu, as mães habitam transparentes. 
Os pais com um pé no corpo e outro no lado de lá do véu. Silenciosos nessa dor que não é menor, não: É apenas uma dor amarrada, escondida, dentro de uma armadura de pedra que imortalizou a expressão antes da perda. É essa armadura de pedra que os mantêm presos ao lado de cá. 
As mães não conseguem, mas eles precisam disso, e de que essa armadura prenda a mão da mãe com tanta força que lhe quebra os ossos insensíveis à dor. 
A Mãe não quer sentir nada. A Mãe quer ir. 
O Pai, o Pai sabe que não a pode perder a ela também e luta com a sua armadura bravia por fazer a cumprir a vida e a morte segundo o destino divino. 
A mãe, já não acredita em Deus. 

As velas acendem-se nos altares e nas campas em Novembro. À noite é possível aos mais atentos sensores humanos ver a aura desse véu. E, os que a identificam, também a atravessam. Emprestam o seu corpo à terra e levam a alma a passar a fronteira e por instantes percebem que a dor e o amor e a felicidade são a língua transfronteiriça. 

Seguro a mão do meu pai e peço-lhe desculpa. Não sei porquê ao certo. Talvez por ter nascido demasiado tarde. Talvez por ter sido demasiado imatura para aprender com ele. Talvez porque como aqueloutra mãe do lado de lá, eu não queria que a morte se cumprisse, divina e fatídica. 
Vejo o seu filho choroso, em busca de colo. Tento dar-lho mas, ele não é meu, e esvai-se no meu corpo trespassando-o - e sou capaz de sentir ainda a sua carência, a sua angústia, o seu desnorte. 

O tempo é escasso neste encurtar de véu - parcas horas, como as horas da noite, se bem que não há horas do lado de lá - A dor permanece enquanto é vivida pelas mães e pais e filhos que restam de alma e corpo na terra. 

Regresso. 
Vejo aquela mãe transparente e sem forças à porta do véu e sei que ela não o vê mas sente-o. E sei que por ela as horas também não passam. As rugas congelaram há muito numa única expressão inexpressível. A única mão que se mantém encarnada é a que é segura por aquele marido-pai que luta por ela num turbilhão de sobrevivência desesperada. 

O véu torna-se compacto ao amanhecer, a mãe, recua por um instante à força da mão puxada. Volta as costas à morte só por um bocadinho. Alonga a sua alma um pouco mais na direcção da vida mas deixa a outra, do lado de lá, como uma âncora, esperando que o filho a encontre. As rugas, congeladas de um corpo já morto de máquina cardíaca operacional mantêm-se expectantes por ganhar expressão. 
As horas não passam e, no entanto, a espera é tudo o que lhe resta: 
- largar a mão e atravessar, 
dura 
a mais incapacitante eternidade. 
 
 

Luzia Peixoto
Novembro 2021
Foto: Egidio Santos (www.egidiosantos.com)

terça-feira, 17 de agosto de 2021


 

Partindo o coração em pedaços de areia fina
E os olhos, que comem sombras por trás do pôr do sol
luz nas estepes e nos arfares selvagens do fim do dia
Corpos unos entre fios de nuvem
A cor, num abrir de noite escura
 
 
 
Luzia Peixoto
 Agosto 2021

 

domingo, 8 de agosto de 2021

Dentro





Entro na floresta pelos poros das arvores
Ouço sem medo os silvos da seiva

Sinto aromáticas as vozes das pétalas

Seremos montanhas num mundo de correntezas
Abriremos rios nas veias da terra
Cavaremos mares nas nebulosas nascentes

Entro nas dunas pelo espaço entre os grãos
Abro em audácia oásis no peito
Sinto ardente as dores do deserto

Seremos areia numa mão de certezas 
Irrigaremos sulcos na terra argilosa
Voaremos estrelas, cairemos sementes

Entro na vida pelo olho do cosmos
Sonho sem medo as mãos junto ao peito
Sinto em segredo a bênção do novo

Seremos graça 
em forma de povo



Luz Peixoto
Agosto 2021

terça-feira, 3 de agosto de 2021


 

 

 

 

 

 

 

 

 

Que a liberdade tem piolhos e não a quero
Que a fome não a tomo e me abona 

Que a dor não a compro e me inflaciona

Que a saúde me é imposta e adoeço

Que a liberdade tem piolhos mas não tem preço

Que a fome me destrona e eu me farto

Que a dor me agonia e me alivio

Que a saúde não se compra na farmácia

Que a liberdade tem piolhos e muito coça

Que a fome dá comichão mas não me mossa

Que a dor está escondida, anestesia

Que a saúde me é tirada a cada dia

Que a liberdade tem piolhos e não me importo

Que a fome só tem lugar quando eu corto

Que a dor é um sentir tão mais profundo

Que a saúde é um direito neste mundo

Que a liberdade tem piolhos e chateia

Que a fome é na Tv não na ceia

Que a dor só me toca a carteira

Que a saúde é ferramenta derradeira

Que a liberdade que é minha e não tua

Põe-te à fome habitante de uma rua

E a dor que te consome me habitua

Que saúde é privilégio que recua

Luzia Peixoto
Junho 2021

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Fui esquecendo o azul ao ver a lua

 

Texto traduzido para espanhol e publicado em ulises.online (ulises - revista de viajes interiores)



Era Lua cheia. Sabia-o porque tinha escolhido especialmente aquele dia. Diziam, nos livros de biodinâmica, que a Lua, mediante a sua fase, influência a fisiologia no que diz respeito à toma de substâncias.  

Era na lua cheia que se potenciava a toma de medicamentos e acreditei por ilação, que a toma de qualquer substância seria potenciada. 

Estava eu ali, quarenta e cinco minutos após a ingestão de um microponto, expectante, sentado à beira dessa experiência… 

Podia dizer-me tanto como todas as outras que vivi mas por qualquer motivo dizia-me mais… Não é todos os dias que reconheço os teoremas quânticos nas fontes de luz que observo… Nem é todos os dias que um ouvido aguçado prescruta o ar e me enrijece os tímpanos fazendo-os soar em melodias solenes. 

Tomei talvez, uma dose alta demais… 

Talvez perca agora o meu chão e não me reconheça nessa subida vertiginosa onde me espalho por completo,

como se o chão fosse no céu e as nuvens, os recados que os homens trazem aos anjos. 

Sinto-me a arfar… ah ah ah…

    - são síncopes descompassadas que me suam as fontes…

Olho a cidade do cimo da colina.

Sei que aquela colina sempre foi palco de momentos nobres:

Lembro-me do primeiro beijo enquanto olhava em  abraço a estrelas 

e dos neons que cortavam a silhueta citadina quando à fogueira fumamos o primeiro charro

Lembro-me, de salvar o Pedro da sua tentativa patética de suicídio quando Jessica, o seu primeiro e ridículo grande amor se mudou para o Oeste.

Agora, afastava-me do miradouro ao sentir a dose profunda que me envenenava e criava dimensões de real até aí despercebidas. 

O coração estava ainda mais forte e a respiração suada tornava-se ensurdecedora aos meus ouvidos sensíveis. 

                          - Eu era agora um GIGANTE sensorial! -


As tonturas e os pensamentos vertiginosos fizeram-me aos poucos e com cautela colocar primeiro uma mão sobre a pedra à minha direita, um joelho no chão, a outra mão… Senti o impacto do cóccix. Foi forte. Sinto que foi demasiado forte pela sonoridade criada e a onda de impacto gerada. No entanto, não senti nada… Nada… O meu corpo... olhei-o com atenção e vi-o desprender-se, como se a vida não dependesse daquele invólucro. 

    - Acalma-te Joel… Acalma-te…-

Observava o meu corpo a deitar-se na relva orvalhada. Percebi que várias horas teriam passado pela quantidade de orvalho já acumulada nas esguias folhas lanceoladas. Sabia-as lá ao afagá-las com as mãos. Contudo, não as sentia… Era tudo uma questão de raciocínio lógico, que não reconhecia como meu… 

Por momentos, senti-me morrer… 

Observava-me agora, ali, deitado, a arfar, as pupilas dilatadas, um ar de pânico abstracto estampado no meu rosto e as gotas de suor que se confundiam com as gotas de orvalho…

    - Acalma-te Joel! -

O coração disparava e conseguia ouvir o fluxo de sangue que me subia pela carótida. Conseguia vê-la pulsar. Os meus olhos fixaram-se no azul profundo da noite. A visão aumentada e exacerbada pela dose excessiva de LSD abria túneis quânticos que me aproximavam da linguagem de Saturno. 

     - Como assim? É tão longe Saturno!... -

Ouvia ainda as vozes emaranhadas dos pensamentos dos moradores da cidade. Logo abaixo da colina…

Sabia-os bem… Alguns dormiam e conseguia perceber os seus sonhos, outros, faziam amor e conseguia ouvir-lhes com clareza os gemidos do prazer de um corpo a fundir-se com o outro. 

Também eu me fundia… Era eu naquele momento a cópula com o mundo. Todo o Universo se servia de mim agora em orgasmo intenso. Subitamente, aquele azul profundo fez-me sentir a pequena morte em simultâneo com o casal por cima do restaurante chinês no cruzamento da 5ª com a 27ª.  

Ouvi o nosso coração suspirar de alívio. Senti o suor retrair-se para dentro dos poros e a boca a quebrar a patine criada pela saliva seca. O azul profundo abraçava-me. Era eu agora, umbilicalmente ligado ao centro galático. Tudo era um momento encasulado em paz profunda…. A visão, aos poucos criava nitidez nas manchas borratadas das estrelas.  Reconheci a Cassiopeia, Andromeda, as três Marias… Pelo canto da visão periférica a luz chamava-me, forte, intensa... Virei, ainda sem consentimento, a pesada cabeça que supostamente teria. Resplandescente, a lua brilhava. Via perfeitamente cada uma das suas crateras e reconhecia o som das ondas eletromagnéticas que percorriam a sua superfície como uma música eletrónica futurista, que enviava uma mensagem muito clara para mim. "És tu Joel. És tu aqui e nesse sonho profundo.” 

A epifania de um contacto directo com a fonte fez-me ser beatitude em forma de sorriso. A Lua, poupou-me à morte naquele momento. De olhar atento na textura das suas crateras, o seu alvor cálido aos poucos aquietou a intensa viagem enteogénica que experienciava. Na fluidez do seu esplendor, fui esquecendo o Joel, e com ele o azul. 

Num delírio fora do tempo senti-me não ser, por toda a  eternidade, reconhecendo-a num pequeníssimo momento.

A luz da Lua começou a cegar-me. Já não conseguia vê-la ofuscado pela intensidade visual sobre os meus olhos. Os sons, até aí límpidos e lúcidos transformaram-se no burburinho agitado das viagens percorridas pelos transportes públicos sobre os viadutos e as buzinas apressadas dos serviços expresso. A cidade amanhecia assim. - Quantas horas teriam passado? -

O corpo, sentia-o agora desconfortável, enregelado, molhado... O prazer antes sentido pelo toque nos vértices da grama não passavam agora de uma memória irreproduzível. Doía-me o cóccix. Ainda deitado, com as mãos em riste tapando a luz intensa, percebi que o azul se tinha tornado ténue, e que a aurora deveria ter sido há já bastante tempo pela posição vertical do sol. Com esforço, levantei-me. A cidade parecia-me igual, no entanto, eu estava diferente. Caminhei colina abaixo e reparei nas marcas deixadas nas árvores pelos vários casais que ali passaram. Na vigésima primeira, a contar do ponto mais alto da colina, estava eu cravado entre dois pedaços de casca grossa. Nesse dia de solstício, tinha decidido que a vida pertencer-me-ia sempre por completo. 

Cambaleante e com dores desci o caminho de terra. A lua permanecia no centro das minhas pupilas mas era o sol que me aquecia a nuca. O azul, ficou esquecido, latente, numa parte nunca antes explorada de mim. - Seria eu ainda? -

     - Joel... Sou Joel! Mas sou mais agora!


 A vida, pertencia-me por completo. 

 

 

Luzia Peixoto